Sem querer acordar em Lumiar

Texto de Ursula Rösele

Um acidente doméstico me levou até a UNA. Não. Uma aula substituta sobre ética no documentário. Não. O acompanhamento dos(as) estagiários(as) do Festcurtasbh. A Escola Livre de Cinema. A Revista Eletrônica de Cinema Filmes Polvo. Nem tudo isso, mas isso tudo, de tudo isso um pouco.

2013. Eu trabalhava, curiosamente, em meu último ano, no Cine Humberto Mauro, Palácio das Artes. Não sei se em uma noite, tarde ou manhã, o então coordenador do curso de Cinema e Audiovisual do Centro Universitário UNA em BH, Júlio Pessoa, sofreu um pequeno acidente doméstico que lhe custou uma cirurgia no joelho. Há pouco tempo eu havia dado uma aula de ética no documentário, em substituição a outro professor, Rafael Ciccarini. Acompanhava, junto à professora Tatiana Carvalho, a seleção de alunes da UNA para o Festival Internacional de Curtas de BH.

Num papo rápido, comentei com ela que tinha dado uma aula lá e curtido a energia do espaço. Tatiana, então, perguntou se eu queria fazer um teste para substituir Júlio em sua licença. Tudo aconteceu muito rápido. Dei as últimas quatro aulas de Direção naquele ano e, em 2014, Júlio me convidou a entrar. Algo atabalhoada, assumi uma antiga disciplina de História da TV e do Rádio.

Há um bom tempo, figuras aguerridas do curso, Nelma Costa, Ataídes Braga, Sávio Leite, faziam investidas em mostras de cinema do curso. Ciente de meu trabalho no Palácio e como produtora cultural, Júlio me deu uma incumbência um tanto quanto ousada: criar, do zero (nada começa do zero, claro), um festival de cinema universitário assinado pelo curso de cinema de lá.

Não havia verba (quase nenhuma, se me recordo bem). Para me pagar, ele fez uma proposta pitoresca: assumir uma disciplina, à época chamada TIDIR (trabalho interdisciplinar dirigido), e construir o festival junto às duas turmas daquele semestre. Sem ter a mínima ideia do que me aguardava, topei, animada. Foram cerca de 45 alunos, entre turnos da manhã e noite. Que, assim como eu, caíram de paraquedas naquela aula inventada, e viveram comigo as primeiras sementes desse festival, que chega à sua décima edição em 2024.

Obviamente nem todos abraçaram a ideia com empolgação. Mas no primeiro dia da aula da manhã, quando entrei na sala, uma aluna não matriculada havia chegado antes de todo mundo e se ofereceu para fazer a disciplina e ajudar. Seu nome, Ana Luísa Bambirra. Além dela, aos poucos, muitas e muitos ali foram compreendendo minha proposta e adicionando a ela ideias luminosas.

Em meu primeiro semestre no Cine Humberto Mauro, programamos o cinema com apenas R$300,00, in cash, que a querida Fabíola Moulin (gerente de artes visuais e responsável pelo nosso departamento à época), conseguiu para nós. Acho que experiências como essa me ajudaram a improvisar. Fácil não foi, em absoluto. Naquela época tinha pouco tempo de experiência em sala de aula e era meu primeiro ano como docente em uma faculdade. No entanto, posso dizer com carinho no coração, que em muitos aspectos esse curso foi uma aula e tanto para mim nos sete anos que lá estive.

As ideias iniciais do nome vieram a partir do desejo de se pensar a luz como elemento fundamental do cinema. Dela, derivamos para uma série de possibilidades, às quais não lembrarei por aqui. Recordo, todavia, que nas etapas finais, estava bastante apegada a “luminar” – “que dá ou espalha luz. Astro, planeta. Aquilo que esparge luz; foco” (

Fonte: Dicionário Online de Português). Me soava poética, algo inspiradora do que poderia nos mover dali em diante.

Certa manhã, Tatiana Carvalho entra na sala dos professores, e me dirijo a ela, para dar sua opinião de qual nome parecia melhor. Num ato falho ou quiçá, destino, ao tentar votar em “luminar”, ela disse: “gosto dessa, Lumiar”.

Anda, vem jantar, vem comer, vem beber

Farrear até chegar a Lumiar

E depois deitar no sereno

Só pra poder dormir e sonhar

E passar a noite caçando sapo

Contando caso de como deve ser Lumiar

Vejam bem como são as coisas. Os ares de Beto Guedes sopraram por ali, batizamos o festival, e tocamos essa música na sala de cinema enquanto os primeiros espectadores entravam para sua noite de estreia.

Para conduzir a disciplina e pensar uma forma viável de ensinar alunes a produzirem um festival ao mesmo tempo em que o produzia, criei um esquema, baseada também em diálogos com várias e vários professores. A baliza central seria tornar o Lumiar um produto do curso, tendo como prioridade que um curso não se faz apenas de matrizes curriculares, salas de aula, provas e trabalhos, mas de uma construção conjunta, disciplinar, parceira, entre professores e alunes. Utopia, talvez, mas foi meu ponto de partida naqueles tempos.

Dividi, pois, ambas as turmas a partir de áreas às quais cada alune sentiria afinidade e capacidade de executar (ainda que nunca tivessem feito antes): registro fotográfico, registro filmográfico, teaser, produção, curadoria. Dessa forma, o festival nasceu e segue sendo construído entre docentes e discentes do curso (TIDIR, disciplina mesmo, somente naquele ano).

Além disso, fizemos uma espécie de concurso, em parceria com o curso de Publicidade e Propaganda, com a generosa e aguerrida participação de uma de suas professoras à época, Kenya Valadares. A Agência Faru ganhou e ficou responsável pela criação, design e diagramação da primeira edição.

Como tínhamos pouquíssimo tempo, fiz um trabalho de formiguinha para buscar faculdades e universidades das Américas (posteriormente, o festival ganhou a alcunha de festival ‘interamericano’). Não teríamos tempo hábil naquela edição para abrirmos edital. Mandei e-mails, telefonei, busquei coordenadores(as) de cursos de cinema em vários países e cidades do Brasil, e solicitei que selecionassem curtas de destaque produzidos por alunes para a comissão selecionar para a Competitiva Internacional.

Toda a equipe, das duas turmas a professores, membros da então produtora do curso (Dígito Zero), formaram uma orla de profissionais responsáveis para a edição dar certo. Naquele período, além das disciplinas que ministrava, fazia doutorado e coordenava a produção de outro grande evento na cidade, o Noite Branca. Acordava às cinco da manhã e seguia frenética até a hora em que dormia no teclado do computador e me virava, tal como havia aprendido – um polvo, para fazer tudo sem deixar a peteca cair.

Com o professor e gerente de cinema do Cine Humberto Mauro, Rafael Ciccarini, coordenei o festival, a curadoria de algumas de suas mostras, e até legendagem de curtas de fora eu fiz (junto de Júlio Cruz, ex-aluno e profissional do Palácio das Artes). Foi um sufoco, tenso, extremamente desafiador, mas hoje, que o festival chega à sua décima edição, percebo como valeu à pena.

Ao final daquele semestre, tínhamos teasers, registros de tudo, aulão sobre Curadoria para alunes interessades, estímulo a aprenderem legendagem e a percepção, literal, das deficiências e qualidades do curso. Diante de obras de instituições como a Escola de Cinema de Cuba (Escuela Internacional de Cine y Televisión), USP (Audiovisual), Universidade Federal Fluminense (Cinema e Audiovisual), Universidad del Cine – Buenos Aires (Cinematografia), Escuela Nacional de Cine – Colômbia (Cinema) e Escuela Nacional de Cine del Uruguay (Realização Cinematográfica), dentre outras, pudemos, professores e alunes, vislumbrar diversos caminhos docentes e didáticos para o curso de cinema da UNA a partir dali.

No último dia, tivemos uma festa de encerramento em outra unidade da UNA. A festa começou com uma intervenção artística conduzida por um dos alunos do TIDIR, Daniel Bretas, grande talento em desenho e grafite. Uma série de artistas pintaram, desenharam e grafitaram em carteiras que, posteriormente, ocuparam salas do curso de cinema.

No dia seguinte, pela manhã, descobri estar grávida de meu Antônio, hoje com oito anos. Por um tempo, foi carinhosamente chamado de bebê Lumiar. Na edição seguinte, bem pequenininho, compareceu e até ganhou crachá.

Há experiências na vida, mesmo pela via de algumas estradas tortuosas, que nos marcam para sempre. Não me recordo hoje se participei de 5, 6 ou 7 edições do festival. O vi descolar de meu útero e alçar voo em diversas direções. Ganhar outras frentes, equipes, temáticas. No Lumiar falamos de ensino do cinema, política, mercado, e agora, como não poderia deixar de ser em se tratando de Sávio Leite, de Amor.

Pautei muitas de minhas ações em sala de aula e no festival, a partir do coração. Por vezes, recebi gratas surpresas. Por outras, decepções e a sensação de não ter deixado raízes através da forma que agi, trabalhei e me relacionei. Um espaço de aprendizado nunca se destina a um só grupo, a uma só forma. Aprendi imensamente como professora, colega e tantas outras funções. Agradeço o carinho dos professores Daniel Veloso (parceiro saudoso) e Sávio Leite pelo convite a participar dessa edição.

Escolhi fazer pela minha maior via pulsante: a escrita. Não era hora de minha presença, mas sei que estando perto ou distante, nossa caminhada deixa rastros. Honrá-los, reconhecê-los, partilhá-los… só o tempo mesmo se encarrega de suas justiças.

Vida longa ao Lumiar!

08/10/2023